sábado, 19 de maio de 2018


Fazenda São Vicente de Paula: remanescente das fazendas anexas Palestina e Mata - Resgate Histórico


Apresentação

            A idéia deste texto surgiu, mais precisamente, pela riqueza dos detalhes que compunham, sobre a fazenda São Vicente de Paula, as lembranças dos parentes que entrevistamos para elaborarmos nosso trabalho de genealogia sobre algumas das primeiras famílias instaladas na região de Franca, de que Leonides e Vicente são descendentes.
           Tentamos retratar a formação, a estrutura e o cotidiano (dentro do possível) de uma propriedade de pequeno porte, existente em nossa região, cuja casa sede celebra seu centenário no corrente ano.

           
Origens

            A Fazenda São Vicente de Paula foi constituída no ano de 1915, quando do casamento de Leonides Alves Taveira com, seu primo, Vicente Rodrigues de Freitas.

Fig.1 – Leonides e Vicente – Acervo dos autores


            A princípio, pelas terras recebidas por Leonides em herança de seus pais, Maria Cecília Rodrigues e João Alves Taveira Sobrinho, desmembradas da Fazenda das Gairovas. Terras essas que vieram a João Alves Taveira Sobrinho por herança de seus pais, Cecília Maria de Jesus e Joaquim Alves Taveira, as quais, Cecília Maria de Jesus herdara de seus pais, Belizária Antônia da Silva Campolina e João Felizardo Cintra.

Fig.2 – Panorâmica da fazenda São Vicente de Paula – Acervo dos autores


            Essas terras faziam parte das fazendas anexas Palestina, localizada no Estado de São Paulo, e Mata, no de Minas Gerais, separadas pelo Rio Canoas. De propriedade do casal Tenente João Felizardo Cintra e Belizária Antônia da Silva Campolina, o imóvel era considerado o maior estabelecimento rural existente no Termo de Franca-SP, no século XIX. Confrontava no seu todo com terras do Patrimônio de Franca, com as fazendas de Canoas, Agudos, São Thomé, Casa Seca, e o Patrimônio da Freguesia do Aterrado (Ibiraci-MG).[1]
                 Empreendedor que era, Vicente logo comprou mais terras, que foram anexadas à Fazenda São Vicente de Paula.


A Fazenda

            Segundo depoimentos da família, e documentos encontrados, ao se casarem, Leonides e Vicente, foram  morar na casa dos pais da noiva, por mais ou menos três anos. Enquanto isso, a casa deles ia sendo construída em um local, especialmente por eles escolhido, conforme a tradição mineira trazida por seus ancestrais, oriundos do Vale do Rio das Mortes, região de São João del Rey.

Fig.3 – Sede da fazenda São Vicente de Paula – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            Vicente descreve em sua primeira caderneta de registros do ano de 1916:

No assento de minha casa gastei com: os tijolos e teias 500:000; serragem da madeira 113:000; tiração de touras 35:000; tiração do travamento 15:000; puchação de toura 50:000; pregos e dobradissas 63:000; mais serragem de madeira 58:500; serviço dos camaradas 70:000; carapina 900:000; pedreiro 750:000; material comprado para a casa 331:500; madeira que o portuguez serrou 130:000; 41 carradas de pedras 41:000; mais pregos 15:000; fechaduras 7:000; mais dobradissas 8:000; peção, cabidos e duas portas 375:000; serragem de taboas 408:000; mobilia 150:000; corral e paiol 401:500.

             A primeira etapa da casa sede ficou pronta pelos anos de 1918-1919. Toda de tijolos, coberta com telhas de barro, produzidos na olaria do primo Theodomiro Alves Cintra (Nego Elói); sem forro; com vigas, soalho e esquadrias de madeira, cortadas no engenho de serra de Antônio Taveira Cintra, tio do casal.
            Por influência luso-mineira, a casa foi edificada térrea de um lado e assobradada de outro, com altos porões, que eram utilizados, um para guardar a lenha, e o outro, para os apetrechos do curral.
            A casa era composta de: uma sala de visitas, que também servia como sala de jantar dos homens, mobiliada por dois grandes bancos de madeira, com assento de couro cru, e uma pequena mesa, tendo na parede, à direita de quem entrava na casa, cabides de madeira e cabeças de veados galheiros; um quarto de empregados da casa, com camas de solteiro; um corredor que dava acesso ao corpo da casa, com uma cantoneira para um pote de barro onde era colocada água para beber; um salão, no qual ficava a mesa “cinco salomão”[2] (representando a proteção e o poder de Deus sobre os espíritos malignos), construída pelo carapina Antônio Apolinário, tio de Izidoro, genro de Vicente e Leonides. Era nesse salão, que ao cair da tarde, Vicente, rodeado pela família e alguns empregados, tocava viola e cantava, e à noite trabalhavam.           
            Desse salão saía: um quarto grande, mobiliado com uma comprida caixa de madeira para guardar a roupa de cama, um armário grande de madeira para as quitandas, os doces, o polvilho, as farinhas de mandioca e de milho. Havia ainda um oratório com uma imagem da Sagrada Família e de outros santos, defronte do qual a família, todos os finais de tarde, rezava o terço; um quarto para os filhos, mobiliado com camas de solteiro e de viúva[3], e uma caixa de madeira para guardar as roupas de vestir; o quarto do casal, mobiliado com uma cama e uma cômoda; e, rebaixada um degrau, a cozinha, construída com piso de lajotas, contendo um fogão a lenha, uma pia que se compunha de uma gamela de madeira servindo de cuba, e um grosso cano, através do qual a água corria diuturnamente, um armário de alvenaria, bancos, tamboretes e uma mesa comprida de madeira com duas grandes gavetas, ao estilo mineiro[4]. Ao fundo da cozinha foi construída uma varanda.
            Todos os cômodos possuíam, nas paredes, cabideiros de madeira, conjugados com uma prateleira. E nos quartos, também, quadros de diversos santos, dentre eles, Santo Anjo da Guarda, São Miguel Arcanjo, A Morte do Justo, Almas do Purgatório. A iluminação era obtida por candeias abastecidas com azeite de mamona, e lamparinas e lampiões alimentados com querosene.
            Na frente da casa foram construídos: uma tulha, com grandes caixas de madeira, para guardar os mantimentos colhidos, onde foi, posteriormente, instalada a desnatadeira para extrair o creme de leite[5]. Anexo à tulha, um cômodo para hospedar viajantes. Ambos eram construídos de tijolos, madeira e telhas de barro. Também um curral com um barracão, e um terreiro, de chão batido, para secar café. Do lado de baixo, um paiol para armazenar o milho, feito de tábuas e coberto com telhas de barro, onde, também, ficava o debulhador de milho. Anexos ao paiol, um barracão para o carro de bois, o chiqueiro de engorda de porcos, e o mangueirão, para os porcos de criar e os carneiros.

Fig.4 –  Mangueirão, barracão e paiol, atrás do qual ficava o chiqueiro – Acervo dos autores


             No fundo da casa foram instalados: um moinho de pedra cabo verde[6], para moer o milho, movido a água, presente de casamento oferecido aos noivos pelo avô materno, e padrinho de batismo de Leonides, Capitão José Rodrigues da Costa, ex-político francano, que segundo ele, servira para moer o fubá utilizado na alimentação dos escravos do Tenente João Felizardo Cintra; um monjolo para limpar o arroz e o café, quebrar o milho para a canjica, esmagar as sementes tostadas da mamona, etc., colocado sob um barracão coberto com folhas de zinco, pois as de barro saíam do lugar quando de suas batidas. Nesse barracão havia, também, uma fornalha para torrar as farinhas de mandioca e de milho, e um batedouro com uma bica d’água para a lavagem das roupas.

Fig.5– Cômodo do moinho de pedra – Acervo dos autores




Fig.6 – Monjolo – Acervo dos autores


            No fundo do pomar, do outro lado do Córrego da Mata, foi montado um engenho de cana, movido por roda d’água, para a produção de melado, açúcar e rapadura. Nesse mesmo local foi instalado um alambique, para produção de cachaça, desativado com a criação do Instituto do Açúcar e do Álcool, pelo Presidente Getúlio Vargas.

Fig.7 – Ruínas do engenho de cana – Foto de Magda Belato, década de 2010


            No final da década de 1930, e meados da de 1940, foram acrescidos novos cômodos à casa: uma despensa, no local da antiga varanda, com grandes bancos de madeira, sobre os quais se colocavam latas de 20 litros contendo as carnes de  vaca e de porco, cozidas e conservadas na gordura, e com uma grande caixa, repartida ao meio, para armazenamento dos mantimentos “in natura”, e do açúcar mascavo, produzidos na propriedade; outros dois quartos, sendo um para as donzelas, com quatro camas de solteiro, e o novo quarto do casal, colocado entre o das donzelas e a saída para os outros cômodos; uma nova varanda saindo da porta do lado direito da cozinha, contendo uma fornalha, um pequeno fogão a lenha, e dois tanques de cimento, um com bica d’água e outro com um batedouro, tendo anexado a ela um grande forno de barro, cuja boca se abria para dentro da mesma; um alpendre à entrada da sala de visitas, cercado por madeirinhas recortadas , do qual se saía descendo uma escada de três degraus, decorado com um banco feito de madeira .

Fig.8 – Detalhe do alpendre – Foto de Fransoá Bertoni




Fig.9 – Banco de madeira – acervo dos autores


            Novas dependências externas também foram construídas: um novo terreiro de café, do lado de cima da tulha, com dois pisos, ladrilhado com pedras retiradas através de explosão com pólvora, por Izidoro, genro de Vicente e Leonides, e puxadas no carro de boi, por Antônio, filho do casal. À esquerda do primeiro piso ficava o lavador de café.

Fig.10 – Piso superior do terreiro de secar café – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            Interessante notarmos a semelhança da casa sede da fazenda São Vicente de Paula, construída no início do século XX, com a descrição feita por Raimundo José da Cunha Matos[7], referente a construções do século XIX:

...A casa do proprietário ou fazendeiro de mediana fortuna consiste em uma varanda na frente do edifício, com dois quartos nos extremos desta. Estes quartos servem para acomodação dos hóspedes. Junto à varanda fica a sala de visitas, que também serve de sala de jantar dos homens. A sua mobília é uma mesa comprida e estreita, dois ou três bancos, um mancebo de pau para por o candieiro ou candeia de ferro, um oratório cheio de imagens debaixo do qual (em ocasiões de moléstia) se arma o altar em que se diz missa para se administrar o sagrado viático. Em cada parede da sala há muitas pontas de veado galheiro dos quais pendem selas, arreios e vários utensílios do serviço doméstico. Ao lado da sala, estão os quartos (ou câmaras e casa de trabalho da família; as cozinhas ficam separadas, assim como os depósitos ou tanques de debulhar milho para se fazer a farinha e a canjica. Igualmente ficam distantes os monjolos, os paióis de milho, arroz, legumes, abóboras, e os telheiros para os carros. Pouco distante da casa, também ficam os currais do gado vacum e cavalar, e os cercados ou pocilgas dos porcos (que andam soltos) que se acham recolhidos a cevar. Todos esses edifícios são cobertos de telha
.
                A administração da fazenda era responsabilidade de Vicente em parceria com Leonides. Enquanto esteve nas mãos deles, todas as atividades ali desenvolvidas eram anotadas em cadernetas. Contratações e acertos com empregados; empréstimos para, e junto, aos parentes e terceiros; compra e venda de animais; produções de suas lavouras; serviços prestados por seu carro de boi; fabricação do açúcar, do melado, da rapadura, da cachaça e do fumo de corda; manutenção da casa; endereços úteis; datas importantes, como a de seu casamento e as de nascimentos dos filhos; receitas de alguns quitutes, de remédios caseiros; orações. Localizamos oito delas. A primeira datada de agosto de 1916 a 1929; a segunda de 19.03.1924 a 1928; a terceira de 13.07.1928 a 1943; a quarta, faltando as primeiras e as últimas folhas, de 1943 a 1951. Duas outras menores de 1944 a 1948. E, além dessas, outras duas mini cadernetas.

Fig.11 – Primeira página da primeira caderneta das anotações de Vicente e Leonides


            O dia-a-dia, ali vivido, começava às seis horas da manhã, e se encerrava pelas 22 horas. As tarefas eram muitas. Distribuídas entre os homens e as mulheres, e algumas poucas, entre as crianças. Os homens eram comandados por Vicente. As mulheres e as crianças, lideradas por Leonides.
            Os empregados eram tratados por “camaradas”. Havia, também, os “colonos”. Eram em média, cinco empregados moradores na região, e mais dez famílias que residiam nas dez casas (sendo duas geminadas) da colônia da fazenda.

Fig.12 – Casa remanescente da colônia – Acervo dos autores


            Recebiam o salário quando as produções eram vendidas. Podiam plantar no entorno de suas casas, criar porcos e galinhas. O leite utilizado era o retirado no curral da fazenda. O querosene, o sal, o macarrão, compravam “nas vendas”, fiado, o que era pago por Vicente, que depois descontava o valor nos seus salários.
            Ao longo dos anos, foram eles: João Romano, que em 1916 pegou o café para formar, a 400 réis, por 4 anos; João Pedro Ribeiro; Artur, que formou “o fumal” (lavoura de fumo), por 20.000 réis; José Vicente Sobrinho, apelidado José Mamaú; Nena, filho de José Mamaú; Sinhana; João Caetano; Boaventura; Justino Pedro; José Baldoíno; Nicomedes; Manoel Ventura; João Ventura; Joaquim Ventura; Benedito Ferreira; Afonso Costa; Olinto Ferreira Borges; Sebastião; Maria; Augusto, da Maria das Dores; Antônio José; Jerônimo Sampaio; Jerônimo Pinto; João Baldoíno; José Jacinto; João Querino; Arcalino; José Bicudo; João Firmino; Antônio Vicente; João Theodoro; João Francisco; Divina; João Bernardo; João Fernando; Pedro Francisco; Antônio Carolo; Antônio, serrador; José Luiz; José, da Izabel; José Galdino; Antônio Rodrigues; José Delfino; Joaquim Bárbara; Antônio Bárbara; Orozimbo; Moisés Peixoto; José Francisco; Antônio Francisco; Limírio; José Thomé; Julião; Francisco Cândido; João Cândido; Joaquim Domingos; Antônio Domingos; Antônio Juca; Antônio Deolindo; José Deolindo; Lourença; José Baiano; Ignácio; Valentino; Juquinha; Franquilim; Juca, garimpeiro; Isolina; José Antônio; Jorge; José Lemes; Jonas Ventura, filho da Maria Ventura; João Bello; Anor; José Vital;  José Raimundo; José Romano, amansador de cavalos; Benedito Bueno; José Pires, apelidado Juca; José Vieira; Maria Velha; Antônio Onório; Francisco de Souza; Geraldo Querino; Augusto de Oliveira; Nicésio; João Francisco; Nico; José Belmiro;  Francisco Umbelino; Geraldo Leandro; Francisco Rodrigues da Costa; José Umbelino; Aparecida; Lázara; Rozária; Luzia; Mariquinha; Dolor; Benedita; Antônio Pedro; Wenceslau; Joaquim Pedro, carreiro, que morava na Furna do Jesuíno, seu sogro; Firmino, casado com a Benedita, irmão da Sá Prudenciana, que era carreiro; Lola, filho do Firmino; Sebastiana, solteira, filha do Firmino e da Benedita; Antônio Mizael de Miranda (Antõe Beraba), casado com Dorcelina de Jesus, que foi criado pelos “Peixotos” no Desemboque. Pais de: Maria, João, Geraldo, Abadia e Zica; Maria Luísa e Conceição que moravam na casa sede da fazenda. Eram filhas da Maria Ventura, moradora na fazenda de João Alves Taveira Sobrinho; Francisco Bertoni; Vicente Bertoni, meeiro no café. Era primo de Emilio Bertoni, que era pai de Fransoá, genro de Vicente. O contrato foi por 5 anos. Eram admirados pela horta que cultivavam, à noite; Antônio Belarmino Tristão, carpinteiro, casado com Serafina. Eram pais de: Maria, Benedito, Antônio, Sebastião, Heloisa, Maria das Dores, Paulo, Odair e Luiz. Após seu falecimento, por doença de chagas, a família mudou-se para Franca-SP; Geraldo Rodrigues da Silva, cognominado Geraldo Congo; Maria Rosa, irmã do Joaquim Rosa, marido da Sá Gertrudes. Morava na fazenda de João Alves Taveira Sobrinho. Dizia ter sido escrava. Era madrinha de crisma de Consola, filha de Vicente e Leonides; Joaquim Rosa; Sá Gertrudes, casada com Joaquim Rosa. Moravam na Fazenda de João Alves Taveira Sobrinho. Foram pais de Isabel e Benedito. Após a morte dos patrões, já viúva, Sá Gertrudes, ou Vó Gertrudes, mudou-se para a Fazenda São Vicente de Paula; Guilhermino Cardoso, casado com Prudenciana Antônia de Jesus (Sá Prudenciana). Trabalhavam na lavoura de café. Moravam na casa que ficava onde o Riacho da Colônia deságua no Rio Canoas; Antônio Francisco da Silva (Antõe Chico), filho de Francisco Mário da Silva e Maria Barbosa de Jesus. Após a morte de seus pais, adolescente, foi levado para a fazenda por Vicente. Lá ele conheceu Augusta Guilhermina de Jesus, filha de Guilhermino Cardoso e de Sá Prudenciana, com quem se casou. Foram pais de: Francisco, Celina, Patrocínia, Milton, Maria, Donizete, Antônio e Fátima; João, carreiro; José Alfredo (Zé Pretinho), que chegou à fazenda ainda criança, e lá permaneceu até ficar adulto. Foi chamado para padrinho de crisma de Ivo, filho de Vicente e Leonides. Casou-se duas vezes. A primeira, com Maria Rosa, que faleceu pouco tempo após o casamento. Segunda vez casou-se com Sebastiana. Tiveram vários filhos. Mudou-se da fazenda, com a família e, após algum tempo, comprou uma chácara na região de Patrocínio Paulista-SP.
            A Fazenda São Vicente de Paula era, praticamente, auto-suficiente. Produzia para sua manutenção, e comercializava parte de sua produção: creme de leite, queijo, requeijão, café, açúcar, rapadura, cachaça, fumo de corda, arroz, milho, feijão, algodão, boi gordo, porcos e frangos. Os ovos eram vendidos para o Felix Garcia, que lá ia, a cavalo, buscá-los. Para serem transportados eram empalhados na palha de milho e acomodados em uma grande cesta de bambu.
            Criavam gado vacum, para a tração, para o fornecimento de leite e derivados, de carne, e, também, para ser comercializado.

Fig.13 – Curral – Foto de Fransoá Bertoni, década de 1950


            Trabalharam na ordenha das vacas, em épocas diferentes, os retireiros Antõe Chico, Geraldo Congo e Álvaro, filho de Vicente e Leonides. O leite obtido era consumido “in natura”, utilizado para a produção do creme, da manteiga, do queijo, do requeijão, e dos doces, tanto para o consumo próprio, como para a comercialização.
            Para tanger o gado, Vicente fabricou seu próprio berrante, feito do longo chifre de um boi da raça “Mirandeiro”, que comprara em Goiás-GO, para corte.

Fig.14 – Berrante feito por Vicente - Acervo dos autores


            Os suínos, de criar eram colocados no mangueirão, ou ficavam soltos, os para engorda eram castrados e presos no chiqueiro. O abate, para o consumo diário, tanto de novilhas, uma vez por mês, quanto o de porcos, a cada quinze dias, era tarefa executada pelos empregados Antõe Beraba e Antõe Chico. Essas carnes, de vaca e de porco, eram cozidas e guardadas na gordura, em latas de vinte litros.
            Galinhas, galinhas-d’angola, gansos, patos, eram criados para o aproveitamento dos ovos e da carne.
            Criavam carneiros para a lã, a tração e a carne. Eram em média 60 a 70 cabeças. Ficavam junto com os porcos, no mangueirão. Pariam a cada seis meses. A cada seis meses, também, eram tosquiados. Para isso eram lavados pela manhã, com água e sabão. Para secarem, sem que se sujassem, eram amarrados, com corda curta, no pastinho do lado de cima da casa, sobre o capim, até as 15 horas. Então eram levados para o salão ou a cozinha, onde deitados no chão, tinham amarradas as quatro patinhas, sendo tosquiados com uma tesoura de tosa. O trabalho era executado por 4 pessoas, sempre mulheres. Caso a lã ainda estivesse úmida, Leonides a colocava sobre um grande pano de algodão que era estendido sobre um girau ao sol. Após seca, a lã era cardada, fiada, ensarilhada. Tingida nas cores desejadas, com exceção dos carneiros marrons e pretos, era novamente colocada para secar. Depois, era dobada e levada para a tecelã, mulher do Elíseo, moradora numa fazenda perto de Ibiraci-MG, para a confecção de cobertas, e de tecidos para calças e agasalhos de frio.

Fig.15 – Carneiros da fazenda, após a tosa – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            Além da lã, os carneiros eram utilizados para puxar um pequeno carro de madeira, no qual eram transportados, barris de cachaça, latas de melado, latões de soro de leite, e outras pequenas cargas. Para o fornecimento de carne eram raramente usados. Eles foram criados, naquelas terras, desde a chegada dos primeiros ancestrais à região, migrantes mineiros, até a década de 1950, quando Vicente decidiu vender seu rebanho.
            Criavam cavalos que eram utilizados para montaria e tração, adestrados, dentre outros, pelo Antõe Chico, que tinha uma máxima: “a gente não pode deixar que o cavalo nos derrube, pois cada vez que ele nos derrubar, ele se tornará mais derrubador”.
        A tralha para montaria era composta de: baixeiros (forros utilizados sob as selas) confeccionados, a princípio, do algodão que Leonides fiava e levava para tecer. Posteriormente, passaram a ser tecidos por eles mesmos, num tear manual, com pontas de tecidos (cadilhos) que compravam, geralmente baratinho, em casas comerciais na cidade; mantas que iam sobre os baixeiros, tecidas da lã de seus carneiros; pelegos, colocados sobre as selas. Os mais simples, feitos por Vicente com as peles de seus carneiros, eram de pêlos baixos, e não tingidos. Conservavam a cor natural, ora brancos, ora pretos, ora marrons. Os melhores, de pêlos mais altos e tingidos, eram comprados da Argentina. Contudo, por esquentarem muito e acreditarem que isso seria prejudicial aos rins dos cavaleiros, utilizavam-nos pouco, e quando o faziam, sobre eles era colocada a badana (pele macia e lavrada). Finalizando, para se firmar o pelego e a badana, usava-se a sobrecilha (tira de couro estreita), afivelada no ventre do animal.
            As selas que usavam, nos modelos com cabeça, sem cabeça, para campear, para senhoras (silhão) e infantil, eram compradas em Franca-SP, do Pintasilvo, na Rua do Comércio, e depois, do Gumercindo, na entrada da cidade, onde hoje está o bairro Ana Dorotéa. Os freios  e os bridões eram comprados, também em Franca, na Casa Barbosa e na Casa Hygino Caleiro.

Fig. 16 – Casa Hygino Caleiro em 1915 – Acervo Museu Histórico de Franca “José Chiachiri”


As rédeas, Vicente as tecia de crina de seus cavalos, nos estilos torcida e trançada. Os cabrestos e laços, Vicente os fazia trançados, de couro de garrote, ou os comprava em Goiás, feitos do couro de veado mateiro. Os chicotes, relhos e rabos de tatu, Vicente os fazia de couro trançado.

Fig.17 – Cavalo Pavão (preto) arreado e, ao fundo, o quarto para viajantes - Acervo da família


            Criavam muares, dada a preferência de Vicente por eles. Volta e meia ele os estava adquirindo. Dizia que esse animal era mais forte para longas e difíceis caminhadas, e mais inteligente. Percebia o perigo à distância, e não arriscava a sua vida e nem a do cavaleiro.
            Os meios de transporte eram a montaria e o carro de boi. A carroça puxada a cavalos, só chegou naquela região pelo final dos anos de 1940.
            O carro de boi de Vicente, de tamanho grande, comportava 55 balaios. Puxavam-no até 16 bois, dependendo do peso da carga. Era usado nas tarefas da fazenda, e também em serviços para terceiros.

Fig.18 – Carro de boi da fazenda – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            Vicente e Leonides organizaram, com a participação de seus filhos, empregados, parentes e vizinhos, um mutirão para abertura de uma estrada de rodagem, ligando a propriedade à Serra do Nego Elói. Sua inauguração deu-se a 12 de junho de 1949. Em comemoração, à noite, foi oferecido, aos participantes, um jantar seguido de um baile, que se estendeu até a manhã do dia seguinte. O primeiro motorista a trafegar por ela foi Chiquinho Carloni[8].
            No início da década de 1950 outro curral foi demarcado, do lado esquerdo e abaixo da casa, cercado por ferros roliços e mourões de aroeira.
            Nessa mesma época, Vicente e Leonides instalaram uma olaria de tração animal, no lado mineiro da propriedade, em um local onde havia argila apropriada para a confecção de tijolos.

Fig.19 – Olaria – Foto de Lander Bellato, década de 1950


            Na fazenda cultivavam cana-de-açúcar, arroz, milho, feijão, mandioca, café, mamona, algodão e tabaco.
            A cana-de-açúcar era plantada no terreno localizado acima da casa sede. E, entre os meses de maio e setembro, era cortada, moída e processada em seu engenho, para a produção do melado, da rapadura, do açúcar e da cachaça. O açúcar utilizado era o da turbina, porque o da masseira era sujo e o que se preparava com ele azedava.
            O arroz cultivava-se na lavoura de café. Era colhido e batido na roça e depois guardado em casca, numa grande caixa, na tulha.
            O milho semeado na baixada, próxima donde deságua o Riacho da Colônia no Rio Canoas, era colhido quando seco e guardado, com sabugo e palha, no paiol.     
            O feijão também era plantado na lavoura de café. Após seco, ceifado e batido na própria roça, era deixado pousar no sereno. No dia seguinte, antes do sol raiar, era juntado e levado para ser guardado, numa grande caixa, na tulha. Mantinha-se conservado por um ano.
            A mandioca, plantada no fundo do pomar, e arrancada no mês de junho, era processada para a produção do polvilho e da farinha.
            O café fora cultivado, ao longo dos anos, em três locais diferentes. Primeiramente, no terreno perto do engenho de cana, do outro lado do Córrego da Mata, que passa no fundo do pomar da casa sede. Depois, do lado mineiro, onde fora a fazenda do Engenho, do Tenente João Felizardo Cintra. E finalmente, no sopé da serra, onde passava a picada (trilha) do Pedro Coelho, através da qual os moradores, da fazenda e região, chegavam até a Rodovia João Traficante, onde tomavam a jardineira (ônibus) para Franca. O tipo plantado era o Bourbon vermelho (hibridação do café “Libéria” com o café “Comum”). Após maduros, os grãos eram colhidos a partir de meados do mês de maio. Levados para o terreiro do segundo piso eram de lá empurrados para o tanque lavador, construído no primeiro piso. Os grãos maduros eram separados dos verdes e das impurezas, lavados, e depois esparramados no primeiro piso para secarem. Uma vez esparramados eram revolvidos, todos os dias, com grandes rodos de madeira, pelos empregados Antõe Beraba, Joaquim, Justino e Antônio Pedro. Ao atingirem o ponto de meia seca, todas as tardes os grãos eram amontoados, e novamente esparramados na manhã seguinte, até secarem bem. Depois eram amontoados na tulha até a hora de serem vendidos, quando, então, eram ensacados e transportados, de carro de boi, para a fazenda do compadre Joaquim Theodoro Tristão, onde o café era limpo na máquina móvel do Ângelo Gazotti.             Da mamona era extraído o azeite utilizado nos candeeiros, no carro de boi e nos remédios. Da espécie Cafelista, era plantada junto às mudinhas novas de café para lhes fazer sombra. Depois de colhidos os frutos, os pés secos eram arrancados, cortados e transformados em esterco. Dos frutos secos extraíam-se as sementes, que, torradas no forno de barro, “socadas” no monjolo (quando emanavam um delicioso aroma, semelhante ao de amendoim torrado) e espremidas num tecido de algodão, liberavam o azeite.
            O algodão era plantado no mês de outubro, no lado mineiro, perto da divisa com Ildefonso Carrijo. Isso, devido ao tipo de solo. Um algodoeiro produzia em média 50 frutos. Sua colheita ocorria oito meses após o plantio. Era colhido pelas moças, por ser considerado um serviço leve. Usavam um grande avental, com um grande bolso na frente aonde iam depositando os capulhos. Essa tarefa era efetuada em várias etapas. Cada capulho produzia um fio de mais ou menos 0,30cm.
            Para a fabricação do fumo de corda, que podia ser fraco ou forte, cultivavam o tabaco. O processo era iniciado com o plantio das sementes, as quais eram antes misturadas com cinza de fogão. Ao nascerem as mudinhas eram raleadas, permanecendo apenas as mais fortes, que eram transplantadas para um novo local. Os pés desenvolvidos tinham as folhas maduradas aos poucos, dando até quatro colheitas. Após apanhadas, as folhas iam para o estaleiro, na sombra, onde ficavam até murcharem e adquirirem uma tonalidade amarela. Então à noite, no salão da casa sede, iluminado por uma grande candeia com vários bicos, feita por Izidoro, os homens retiravam-lhes os talos e faziam os pavios, que eram emendados até formarem uma longa corda, que era enrolada num sarilho. Esse sarilho era levado para um cômodo pequeno anexo à tulha. Todos os dias mudava-se essa corda de um sarilho para outro, aspergindo sobre ela uma mistura de cachaça com água, para que o fumo produzisse um aroma característico. Se não fosse virado apodreceria. Esse processo era realizado por três meses, até secar bem. Depois, ficava curtindo por seis meses, só então poderia ser vendido.
            Utilizavam no preparo da terra e no plantio, equipamentos de tração animal. Os arados eram dois, um grande, puxado por uma junta de bois, e um pequeno, por um burro, ou um cavalo, que puxavam também a plantadeira. Todos operados por empregados da fazenda.

Fig. 20 – Anúncio veiculado no jornal Commercio da Franca, edição de 07 de setembro de 1939


            O sabão por eles utilizado era fabricado na propriedade: sabão de cinza, ou sabão de coada. Era feito com gordura de vaca, ou de porco, coada de cinza, e ervas aromáticas.
            Necessitavam comprar o sal, o querosene, o macarrão, a farinha de trigo, armarinhos, os tecidos melhores, os produtos de toucador, alguns utensílios domésticos e ferramentas rurais.
            Perto de lá existiam as “vendas”, como a do Amadeu, na estrada que leva à Franca. Havia, também, os mascates. Um dos que lá iam, era o Tiago, que morava em Franca, na última casa antes da ponte da Rua Voluntários da Franca. Ele ia montado em um cavalo e em outro atrelava duas grandes malas, onde colocava as mercadorias: tecidos, linhas, agulhas, sabonetes, águas de cheiro, etc. Mas Vicente achava tudo muito caro e preferia comprar nas lojas de Franca.
            Os remédios eram raramente adquiridos (na farmácia em Ibiraci-MG, na farmácia do Manoel, em Franca-SP e na farmácia de Garimpo das Canoas, atual Claraval-MG), pois Leonides os preparava com plantas, bem suas conhecidas, colhidas na fazenda e nas redondezas:
            - Cicatrizante e analgésico: erva-de-santa-maria;
            - Gripe: levante, hortelã, poejo, gervão, fedegozinho;
            - Lombrigas: pó de chifre com poejo e hortelã;
            - Disenteria: macela, losna;
            - Má digestão: toiá (cipó grosso), carijó, alcaçuz, marroio;
            - Nervosismo: erva cidreira com hortelã;
            - Prisão de ventre: azeite de mamona;
            - Rins: quebra pedra, chapéu de couro;
            - Cólicas: mentrasto;
            - Dor de dentes e garganta (bochechos e gargarejos): unha de gato, espinho            agulha, folha de batata doce, casca de romã;
            - Tosse comprida: urina de vaca com leite;
            - Contusão: arnica;
            - Nariz entupido: vapor de folhas de eucalipto;
            - Unha esmagada: sal, azeite de mamona e querosene;
        - Inflamações: banha de arnica, feita com a membrana que envolve o intestino do porco, cachaça, cânfora, fumo e folhas de arnica, que ficava curtindo por quinze dias antes de ser usada. Era passada no local inflamado com uma pena de galinha.
            No tratamento de ossos quebrados, Leonides assim procedia: ajeitava os ossos, passava azeite de mamona com sal no local, enrolava um tecido de lã; punha talas de bambu, enrolava mais tecido de lã, passava clara de ovo misturada com breu amarelo[9] derretido, que ficava como um mingau, enrolava um tecido de algodão que pudesse ser trocado para lavar, e ao dormir, acomodava o membro fraturado numa telha de barro. Em caso de fratura exposta, todavia, o acidentado era encaminhado para a Santa Casa de Franca.
            As tarefas da casa eram executadas pelas mulheres, e algumas pelas crianças. A limpeza era delegada às filhas mais velhas de Leonides, e à empregada Conceição, que certa vez ao varrer as paredes, por acidente, disparou a garrucha de Vicente, que, pela Graça de Deus, não feriu ninguém, pois o tiro saiu para o chão. Do preparo das refeições cuidavam Leonides, a filha Martinha e a empregada Conceição. Da limpeza dos utensílios de cozinha encarregava-se a empregada Sebastiana. Da lavagem das roupas cuidavam Maria Luiza, Maria Ventura e Sá Prudenciana. Da confecção dos doces, Maria Ventura e Martinha[10]. No feitio das quitandas, uma vez por semana, trabalhavam Leonides, as filhas Maura e Martinha, e as empregadas Maria Rosa e Conceição. Quitandas essas, que eram guardadas em balaios de bambu, feitos pelo empregado Antõe Beraba, os quais eram forrados com tecido de algodão cru. As mais apreciadas eram: o biscoitão, o pão de queijo, a broa de fubá, a rosca, o chorão e a brevidade. Do preparo das carnes de porco e de vaca encarregavam-se Maria Rosa e Conceição. As costuras ficavam a cargo de Leonides e da filha Maura.
             À noite, as mulheres, regadas a café, leite, chá de canela ou canelinha, e quitandas, voltavam a trabalhar até as 21h00. Descascavam e ralavam a mandioca, para o polvilho e a farinha, para o que adaptavam o ralo à roda d’água que era usada no moinho de fubá. Fiavam a lã de carneiro. Descaroçavam e fiavam o algodão, para o que passavam os capulhos pelo descaroçador, reservando as sementes para serem plantadas novamente. Cardavam (penteavam) o algodão até ficar fofinho, então faziam um pavio grosso, que era levado para a roda de fiar para fazer o fio. Depois esse fio era ensarilhado para fazer as meadas que, então, eram tingidas em diversas cores. Para a obtenção da cor azul, utilizavam uma planta chamada erva-anil, existente na fazenda. No site Senhora Natureza há a informação de que a transformação das folhas e ramos do anil em corante é bastante simples. Para isso, a técnica mais utilizada é a de fermentação em água fria, durante 1 dia. Por esse processo, através da compressão das folhas e ramos debaixo da água por 24 horas, é extraído o material corante, que fica depositado no fundo dos recipientes. Depois disso, é necessário somente que se retire a água para a coleta de uma pasta, que é, efetivamente, o corante chamado de anil.
            Para as outras cores, usavam a tinta guarany em pó. Uma vez tingidas, as meadas eram colocadas para secar no varal. Após secas iam para a dobadoira para fazer os novelos. Então, esses novelos eram levados para a mesma tecelã, mulher do Elíseo, que os transformava em tecidos para calças, cueiros de nenê e peças para o serviço diário.

Fig.21 – Maura, filha de Leonides e Vicente, fiando na cozinha – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            Às crianças competia: tratar dos porcos e das galinhas; recolher os ovos dos ninhos, que ficavam perto do chiqueiro e do paiol, em cuias feitas de cabaça, ou de coité; pegar os frangos a serem sacrificados pelas irmãs e empregadas da casa; recolher o sabugo e a palha do milho debulhado, para usar no fogão a lenha; buscar as vacas no pasto, pela manhã, para serem ordenhadas, e à tarde para apartá-las dos bezerros; transportar o leite até a fazenda das Gairovas para ser desnatado; puxar, em carrinho de carneiro, o melado do engenho e o soro do leite desnatado para alimentar os porcos, e barris de cachaça.
            Para o contato com o ABC e a tabuada, as crianças dispunham de professores particulares. Os filhos mais velhos de Vicente e Leonides, estudaram na casa dos avós maternos, João e Cecília. Já para os caçulas, Vicente contratou, em Ibiraci-MG, a professora Isaura Peixoto. Sentados em tamboretes e bancos, usavam uma grande mesa, colocada no antigo quarto do casal, a qual fora adaptada para a função, tendo as pernas rebaixadas.     
            A educação pública chegou à fazenda somente no ano de 1956, com a criação da Escola Mista Municipal da Fazenda São Vicente de Paula. Empenharam-se para isso, dentre outros, os proprietários da fazenda, Vicente Rodrigues de Freitas e sua mulher Leonides Alves Taveira, a primeira professora dessa escola, Thereza de Lourdes Bellato e a Profª Catarina Mazzola.
            Primeiramente funcionou, por uns três anos, no salão da casa sede da fazenda, com mobiliário recebido de outra escola que havia encerrado suas funções. As aulas eram ministradas para as três primeiras séries do antigo curso primário. Em um período, para os alunos de primeira série, e em outro, para os de segunda e terceira séries. Também, à noite, havia o curso para alfabetização de adultos.
            Os alunos, dessa fase da escola, foram, dentre outros, Olívio Rodrigues, os irmãos João, Lauro e Maria da Consolação Pires, os irmãos Wanda, Maria Salete e Carlos Roberto Rodrigues dos Santos, os irmãos Miguel e João Borges, e os irmãos Francisco, Natalina, Zelinda e Patrocínia da Silva.
            Ao final desses três primeiros anos foi realizada uma festa, com leilão de prendas. O dinheiro arrecadado foi usado na reforma de uma das antigas casas de colono, para onde foi transferido o mobiliário e instalada a escola.
             Os vizinhos eram, praticamente, todos parentes de Leonides: João Taveira e Maria Cecília, pais de Leonides; Floripes, Marta Maria, Maria Marta, Júlia; Amélia, Horácio, Ernestina, irmãos de Leonides. Dentre os não parentes, destacava-se Benício, homem forte, calmo, muito sério, o que o tornava bravo diante de situações distorcidas. Sua mudança de humor era sempre percebida pelos conhecidos, pois quando ficava nervoso seu semblante mostrava um sorriso característico. Era dono de um sítio muito bom, no alto da serra, no Córrego da Onça, onde a Lurdinha Bellato lecionou. Mas, apesar de ser proprietário de terra, preferia trabalhar de empregado, na lida de gado vacuum, para os “Garcias”.
            Quanto à religiosidade, reuniam-se para a reza do terço, por motivos diversos. Um deles, quando da festa do santo de devoção de amigos e parentes. Essas reuniões aconteciam, preferencialmente, à tarde. As Missas eram celebradas, em ocasiões especiais, nas residências, nas Capelas, como a de São Sebastião na fazenda do Amélio Taveira Sobrinho (Melinho), ou na da fazenda do Jorge Davitala.
            Na Sexta-Feira da Paixão permaneciam em casa em silêncio, jejuando, rezando o terço. Não limpavam a casa, nem as vacas ordenhavam. Quando possível, iam à Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Ibiraci-MG.
            Frequentavam a matriz de Ibiraci, indo a cavalo, também nas primeiras sextas-feiras do mês e nas missas de Natal e Ano Novo.

Fig.22 – Matriz de N.Srª.das Dores-Ibiraci-MG – Foto de Lander Bellato, década de 1940


            As festas também aconteciam. No aniversário de João Alves Taveira Sobrinho, celebravam os três santos juninos: Antônio, João e Pedro. Limpavam bem o curral e instalavam ali um toldo. Preparavam um altar para a Missa, rezada em latim, que era presidida pelo padre de Ibiraci, na época, Padre Theodoro Fernandez. Levantavam o mastro para os três santos e acendiam a fogueira. Um sanfoneiro de Ibiraci, ou discos na vitrola de corda, dava início ao baile. Dançavam, inclusive quadrilha, até o dia clarear. Pois como voltar para casa naquela escuridão? Pela uma hora da manhã, era posta uma grande mesa de quitandas: roscas, broas de fubá, biscoitões de polvilho, pães de queijo, bolos de fubá, sequilhos de polvilho doce, chorões, brevidades, acompanhadas por leite com chocolate quente, café, chá de canela, chá de canelinha e quentão.
            O Reisado, comemorado no dia 6 de janeiro, era organizado pelos membros, mais ou menos seis pessoas, da família do professor Arcaim Souza, que moravam na fazenda de João Alves Taveira Sobrinho. Eles eram músicos. Tocavam violino, bandolim, cavaquinho e violão.
            A Congada era apresentada pelos irmãos apelidados Congos: Geraldo, José, Manoel e Antonio Rodrigues da Silva. Os “Congos” foram criados pelos “Peixotos” e pelos “Tristãos”.
            A Catira, também chamada cateretê, era dançada por 12 homens, organizados em duas fileiras opostas, seis de cada lado, todos sapateando. O grupo era constituído por Vicente,  tocando viola; o irmão de Vicente, Aurelino, tocando violão; o genro de Vicente, Izidoro, tocando violão; o irmão de Izidoro, Genaro, tocando cavaquinho; Benedito Cruz, tocando violão, e Guilherme Gonçalves, tocando viola. Batendo palmas, José Jacinto (Inhambu), Melinho e os irmãos “Congo”. Como o grupo preferia dançar sobre tábuas, suas reuniões aconteciam somente nas casas assoalhadas, especialmente nas de Vicente e do seu primo Melinho.
            Acontecia na região a tradicional “traição”. Era quando amigos e vizinhos resolviam ajudar um companheiro em seu trabalho na lavoura. Apareciam antes de clarear o dia, soltando foguetes, de surpresa para o amigo, apesar de a mulher dele já ter sido avisada, para o preparo da festa. Tiravam o dono da casa da cama, e o levavam para um banho frio debaixo da bica d’água, depois iam para a lavoura até acabarem o serviço, onde, também, se alimentavam com a comida feita pela dona da casa e demais mulheres, que iam ajudá-la. Dependendo do número de pessoas envolvidas, fazia-se necessário o abate de uma vaca para alimentar a todos. Trabalho terminado, iam para suas casas e se preparavam para voltar para o baile que se estendia noite adentro. Dançavam ao som da sanfona, e lá pelas tantas se deliciavam com uma mesa de quitutes e cachaça.
            Semelhante à “traição” havia o “mutirão”, com a diferença de que neste, quem pedia ajuda aos companheiros, era o dono do serviço por acabar.
            Na década de 1960, Vicente vendeu todos os seus bens, incluindo a fazenda São Vicente de Paula, tendo sido esta comprada por alguns de seus filhos e genros. Hoje, ela dividida, ainda pertence a alguns de seus descendentes. Atendendo à legislação ambiental, tem 40% de suas terras ocupadas por áreas de preservação permanente e reserva florestal legal.


 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979

REFERÊNCIAS DIGITAIS

INSTITUIÇÕES CONSULTADAS
Franca-SP
Arquivo Histórico Municipal “Cap. Hipólito Antônio Pinheiro”
Museu Histórico Municipal “José Chiachiri”
Primeiro Cartório de Registro Civil
Cartórios do Primeiro e Segundo Ofício e de Protesto de Títulos e Letras
Centro de História da Família, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
Ibiraci-MG
Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora das Dores
PROBRIG – Protetores da Bacia do Rio Grande

ENTREVISTAS
Antônio Rodrigues de Freitas, filho de Leonides e Vicente, e sua esposa Sônia Belato de Freitas, proprietários do Sítio São Vicente de Paula, área remanescente da Fazenda São Vicente de Paula, pais da autora deste texto.
Maria José Rodrigues Bertoni (Consola), filha de Leonides e Vicente, e seu marido Fransoá Bertoni.
Lander Bellato, viúvo de Maura de Freitas Bellato, filha de Leonides e Vicente.
Thereza de Lourdes Bellato Kaluf, primeira professora da escola pública da fazenda.




[1] Na tradição oral da família dizia-se que a fazenda do Ten. Felizardo estendia-se de Ibiraci até Franca, o que confirmamos agora documentalmente.
[2] A mesa, que ainda existe, tem o formato oval, com cinco pés, cada um deles ligado a uma das pontas da estrela.
[3] Trata-se de uma cama pouco mais larga que a de solteiro, que servia para acomodar os irmãos menores juntos com os maiores.
[4] Segundo o blog lugaresdeminasblogando.blogspot.com, o costume das mesas mineiras possuirem gavetas, teve início com a chegada, após o descobrimento do Brasil, dos cristãos-novos, ou seja, judeus, que apesar do batismo forçado, continuavam praticando secretamente a sua religião. Como no judaismo a comida recomendada é a kasher, ao chegar um visitante – normalmente um cristão-velho, com medo de serem reconhecidos e denunciados, eles escondiam nas gavetas o que estavam comendo e ofereciam ao visitante outro alimento.  

[5] Inicialmente a extração do creme de leite era feita na fazenda das Gairovas, propriedade dos pais de Leonides.
[6] Expressão utilizada na família Rodrigues de Freitas.
[7] Em Corografia Histórica da Província de Minas Gerais, Vol. II, do ano de 1837.
[8] Chiquinho era motorista de praça (taxi) em Franca-SP.
[9] Extraído da terra branca nos Agudos, região de Claraval-MG, parecido com resina de árvore.
[10] Doces de leite, ambrosia, e das frutas colhidas no pomar da casa: abóbora, mamão, laranja da terra, limão china, figo, pêssego, cidra, manga, banana, marmelo. Para os doces de goiaba (goiabada, em calda, cremoso), os frutos eram colhidos em uma capoeira especialmente reservada, no lado mineiro da propriedade.