VICENTE RODRIGUES DE FREITAS
MEMÓRIAS
Sônia Regina Belato de Freitas Lelis
Walter Antônio Marques Lelis
Vicente Rodrigues de Freitas nasceu aos 20 dias do mês de setembro do ano de 1890, na Fazenda do Agudo, distrito de Garimpo das Canoas, atual Claraval-MG. Foi batizado com oito dias, na Matriz de Nossa Senhora das Dores, do Aterrado, atual Ibiraci-MG, pelo Padre José de Andrade Costa Colherinhas, tendo como padrinho, o tio materno, Manoel Borges de Freitas, e madrinha, a avó materna, Ambrozina Maria de Jesus.
Primeiro filho do casal Manoel Rodrigues da Costa e Maria Afra de Freitas. Neto paterno de Juvêncio Rodrigues da Costa e de Maria Cecília de Jesus. Neto Materno de Ignácio Borges de Freitas e de Ambrozina Maria de Jesus.
Teve onze irmãos: Maria Cecília de Freitas, Afonso Rodrigues de Freitas, Alice Rodrigues de Freitas, Lydia Rodrigues de Freitas, Aurelino Rodrigues de Freitas, Acácio Rodrigues de Freitas, Antônio Rodrigues de Freitas, Joaquim Rodrigues de Freitas, Octávio Rodrigues de Freitas, e, Maria e Ivo falecidos ainda crianças.
Vicente foi um homem, à imagem de seu tempo, reservado, sisudo, diziam os adultos. No entanto, com os netos, arriscava se expor. Dava-lhes conselhos, balinhas de toffe, de mel recheada, o que era uma festa para eles. Falava-lhes sobre suas viagens para comprar gado e sal; sobre sua infância, brincadeiras, traquinagens; sobre o fato inusitado acontecido no dia de seu casamento.
Vicente casou-se no dia 29 de maio de 1915, com Leonides Alves Taveira, filha de João Alves Taveira Sobrinho e de Maria Cecília Rodrigues, após dispensados de impedimento do terceiro attingente ao segundo grau de consanguinidade.
Naquele dia, conforme o costume da época, cada noivo saiu de sua fazenda, para a cerimônia que se realizaria na Matriz de Nossa Senhora das Dores, do Aterrado, atual Ibiraci-MG. Ele foi em seu garboso cavalo, acompanhado de seus parentes; ela lindamente em seu vestido de noiva, com sua família. Após a cerimônia, na volta para casa, Vicente ofereceu à sua, agora esposa, a garupa de seu cavalo. Quando Leonides se sentou, o animal se assustou com o amplo vestido que ela usava, empinou e a derrubou. Nesse momento, rindo ele dizia: ela já veio me trazendo preocupação! Os netos, então, perguntavam: - vovô ela se machucou? Ele rindo, ainda, respondia: - qual nada, o vestido não deixou.
Outras vezes, contava-lhes causos, como quando um dos peões de sua comitiva teve congestão, desmaiou e caiu do burro, e como demorava voltar à consciência, e sem medicamentos, os demais peões urinaram em um chapéu e deram de beber ao companheiro, que se salvou.
Vicente viveu, até se casar, na citada fazenda de seus pais.
Ainda bem jovem, em sociedade com seu pai, e o irmão Afonso, comprava bois em Rio Verde-GO. Quinhentas cabeças por vez.
Parte desses bois era vendida para os invernistas da região. Outra, eles colocavam na própria invernada por seis meses, para engordar, e vendiam diretamente para um frigorífico, em Barretos-SP.
Além de Vicente e do irmão dele, Afonso, a comitiva era composta pelos empregados de seu pai.
Compunham a comitiva, o ponteiro, um peão experiente e conhecedor das estradas, que ia à frente tocando o berrante; os rebatedores, peões que cercavam o gado, impedindo que se espalhassem; os da culatra iam à retaguarda da boiada; os da “culatra manca” ficavam para trás tocando os bois que tinham problemas para acompanhar a boiada; e o cozinheiro.
Era, em média, seis homens, cada um com dois animais, para serem revezados durante a viagem. Dessa forma a tropa se compunha de doze animais para montaria, a madrinha e mais quatro levando a carga. Eram sempre muares, por serem mais resistentes que os cavalos. Levavam o necessário para a sobrevivência durante a viagem, pois a marcha seria de três meses, entre ida e volta. À frente ia a madrinha, com um cincerro ao pescoço, a comandar os outros animais. A seguir os quatro animais com a carga: carne-seca, farinha de mandioca, feijão, rapadura, café, toucinho, aguardente, utensílios para cozinhar, imagens de santos, viola, violão, guardados em caixas enganchadas, atreladas duas a duas, sobre os lombos dos animais.
Caminhavam o dia todo, somente parando para se alimentar: almoço e jantar, e, para dormir. O pernoite era nas fazendas que faziam parte do trajeto. Ali desmontavam, davam de comer e beber aos animais. Faziam uma fogueira, preparavam o jantar, tocavam, cantavam, contavam causos. Ás vezes, o fazendeiro os convidava para jantar na casa dele, e se a casa fosse assoalhada, além de contar causos, cantar e tocar, eles, também, dançavam a catira.
Seu berrante, Vicente mesmo o fabricou usando o longo chifre de um boi da raça “Mirandeiro”. Esse artefato era usado para atrair, estimular ou acalmar o gado e dar sinais aos demais peões da comitiva. Ele emite sons, que podem ser graves ou agudos, dependendo do toque. São vários os tipos de toque do berrante, que se diferenciam de acordo com a situação: – saída ou solta: toque destinado a despertar a boiada pela manhã; – estradão: toque que reanima a boiada na estrada; – rebatedouro: toque de aviso de perigo; – queima do alho: aviso de que o almoço está pronto.
A viagem de volta, com o gado, era feita passando por Uberlândia e Uberaba, no Estado de Minas Gerais. Atravessavam o Rio Grande na altura do Porto da Joana, onde, posteriormente, foi construída a Ponte de Peixoto, todos nadando: boiada, muares e peões. Os homens desmontavam dos animais, retiravam seus freios, e desnudos, agarravam-se às suas caudas e nadavam. Ao chegarem à outra margem, precisavam, rapidamente, cuidar dos bois, pois alguns, esfomeados pelo exercício, acabavam comendo de um capim amargo ali existente, de nome timbó, que ingerido provocava o inchaço e o rompimento dos buchos dos animais, levando-os à morte.
Em Campinas-SP, buscavam o sal, em carro de boi, para uso próprio e para comercializar. A viagem durava três meses. Levavam, sempre, um eixo sobressalente para o carro, que iria substituir o outro, que, pela longa distância percorrida, se partia devido ao forte aquecimento sofrido.
Nessa vida Vicente viveu até seus 24 anos de idade, quando, então, se casou, e organizou sua própria fazenda – Fazenda São Vicente de Paula. Pois, a pedido do sogro, não mais viajou para comprar sal e bois. Limitou-se à engorda e comercialização de bois, ainda em sociedade com seu pai, o irmão Afonso, mas, também, agora, com seu sogro João e o cunhado Horácio Taveira.
Desse tempo, o gosto por contar causos; pela viola, que tocava todas as tardes, no salão de sua casa na fazenda, rodeado pela família e alguns empregados; pela catira, tocada e dançada na sala de entrada de sua casa, ou na casa do primo Melinho, pois era necessário que fosse assoalhada; por montar muares, que justificava dizendo que esse animal era mais forte para longas e difíceis caminhadas e também mais inteligente. Percebia o perigo à distância e não arriscava a sua vida e nem a do cavaleiro.
Seus animais eram arreados com esmero, a tralha cheia de argolas de metal. Na garupa, além da capa, o laço de couro de veado mateiro.
Católico, tinha o costume, talvez por ser catireiro, de cantar as orações: Salve-Rainha, Oração de São Bento, Oração de São Francisco, dentre outras. Sempre que se anunciava uma tempestade ele cantava a Salve-Rainha pedindo proteção divina, e segundo testemunhas, essa proteção de fato acontecia.
Habitualmente, Vicente levava o gado de sua Fazenda São Vicente de Paula, pertencente aos municípios de Ibiraci-MG e Franca-SP, para suas terras na Fazenda do Agudo, no município de Claraval-MG. Acompanhavam-no alguns de seus filhos, e alguns empregados. O trajeto era percorrido por quase um dia inteiro, pois o gado era moroso no andar. E, também, precisavam parar para se alimentar, e o gado pastar. Chegavam ao Agudo no final da tarde. Por lá pernoitavam na casa de seu irmão Aurelino (Lolô) e de sua cunhada Ernestina (Tina).
Em uma dessas viagens, foram pegos por um temporal, com muita chuva, raios e trovões. Vicente pediu aos seus filhos e aos empregados que continuassem caminhando, e passassem bem longe das árvores. E começou a cantar a Salve Rainha. De repente ouviram um forte estralo, olharam para trás e viram a grande paineira pela qual tinham, há pouco passado, partida ao meio por um raio.
Vicente gostava de caçar, o que era permitido à época, e para tal, obtinha autorização mediante pagamento de taxa. Usava bons cavalos, como o Pavão (que era da cor queimado), o Pássaro-Preto (da cor preta), oito cachorros da raça Nacional, cartucheira de dois canos, garrucha 44 e uma buzina feita de chifre pequeno. Caçava o veado catingueiro, ao pé da serra, no lado mineiro de sua fazenda. Caçava aos domingos. Saía às 8 horas da manhã. Seus companheiros de caça eram o Antônio Taveira e o Vicentinho Batista. Levavam sempre dois empregados. Dentre eles o Antõe Chico e o Antõe Honório. Temporada maior foi quando decidiram caçar na Fazenda do Esmeril, na região de Patrocínio Paulista (SP), onde permaneceram por uma semana.
Cavalhada, Vicente também correu, com o grupo “Festeiros do Divino de Franca”, a convite do compadre, Nhonhô Jacintho (Manoel Jacintho Neto).
Em sua caderneta, onde lançava os dados referentes à administração de sua fazenda, do ano de 1939, anotou: gastos com as cavalhadas: 785.500: com ferragens= 31.000; fitas e faixas= 15.000; transporte cavalo= 100.000; uma barrigueira= 10.000; um par de botas= 100.000; para Virgínio= 438.000.
O grupo apresentou-se nos dias 21, 22 e 23 de outubro de 1939, no Parque da Água Branca, em São Paulo-SP. Os cavaleiros participantes, segundo o jornal Correio Paulistano, exibiram-se elegantemente, trajando rica indumentária, demonstrando destreza e as maneiras do cavalheirismo das Cruzadas, montando magníficos corcéis, cujos valores iam de 2 a 8 contos de réis.
Pelo lado Cristão, correram: José Jacintho da Silva, Tarcísio Alves Leite, Vicente Rodrigues de Freitas, Antônio Pimenta, Manoel Theodoro da Silva, Mario Placido, Farid Salomão, Milton Jacintho Guimarães, Dinamerico de Freitas, Ivan Ribeiro, Arisquy Bruxelas, Carlos Antônio Lemos Jacintho, Geraldo de Freitas. Pelo Mouro: Continentino Jacintho da Silva, Marco Aurélio de Lucca, Theofilo Rodrigues da Costa, Salomão Abrão Scaff, Verginio Reis, Argentino Ferreira Pinto, Manuel Jacintho Neto, Fábio Jacintho Lopes, Antônio Jacintho Lemos, Sebastião Fábio de Castro, José Alfredo Coelho, Alberto Mendes, Ismar Jacintho, Mário Borges de Freitas. Princesa: Deyse Jacintho.
O evento foi muito divulgado por emissoras de rádio e jornais. Dentre eles, O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, da cidade de São Paulo, o Comércio e o Tribuna, de Franca. Teve como paraninfos, Dr. Adhemar Pereira de Barros, Interventor Federal de São Paulo, e sua esposa, a Srª Leonor Mendes de Barros, com grande apoio da sociedade, e de várias empresas, como: Companhia Antártica Paulista, Lynce Ltda, e as Companhias de Estrada de Ferro Paulista, Mogyana, São Paulo Railway, pois visava beneficiar as obras da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Franca, e do Sanatório “Leonor Mendes de Barros”, em São Paulo. Foi filmado, abrilhantado por diversas corporações militares, e muitos fogos de artifício.
Dando início à festividade, no dia 20, às 16 horas, os cavaleiros desfilaram no centro da cidade de São Paulo, ao toque de Banda de Clarins, Batedores, e queima de fogos, saindo da Avenida Água Branca, seguindo pela Rua das Palmeiras, Praça Marechal Deodoro, Avenida São João, Rua Líbero Badaró, Praça do Patriarca, Rua Direita, Praça da Sé, Praça João Mendes, Rua 15 de Novembro, Rua João Brícola, Viaduto Santa Efigênia, Largo Santa Efigênia, Rua Antonio de Godoy e Avenida São João, voltando ao mesmo ponto de partida.
A comitiva hospedou-se no destacado Hotel Central, de quatro pavimentos, único no estilo, à época, inaugurado na década de 1920, localizado na Avenida São João, nº 288, cujos números de telefone eram 4-0946 e 4-5589. Em papel com timbre do hotel, Vicente escreveu à Leonides, no dia 19 de outubro de 1939, para dar notícias suas, e saber dos seus, que tinham ficado em sua fazenda.
Os Festeiros do Divino voltaram para Franca no dia 26, no trem das 21h15, que chegou com duas horas de atraso. Na estação, uma grande multidão os aguardava. Foram recebidos com palmas, vivas, rojões, e a Banda Municipal entoando uma marcha. Saudou-os em nome do povo francano, o Prof. Homero Pacheco Alves, e a senhorita Maria Angélica de Campos Bicudo. De lá seguiram, em cortejo, até a Prefeitura onde foram, novamente, saudados, dessa vez, pelo advogado Vicente de Paula Lima, em nome da população de sua terra. Os cavaleiros agradeceram, por intermédio do Dr. Romeu do Amaral Gurgel, com eloquente discurso.
Encerrando as comemorações, no dia 29, às 10 horas, foi a eles oferecido um churrasco, na Usina Santo Antônio, de propriedade de A.Rafaeli & Cia.
Em sua fazenda Vicente viveu até meados da década de 1950, quando, então, mudou-se para uma chácara, de sua propriedade, localizada no bairro do Cubatão em Franca-SP. Embora, com o passar dos anos, algumas vezes tenha alterado o endereço de sua residência, não mais deixou a cidade.
Vicente faleceu, já viúvo, aos 22 de agosto de 1977, em Franca-SP, onde foi sepultado no Cemitério da Saudade, no jazigo da família Alves Taveira, por ele adquirido, quando do falecimento de seus sogros.
REFERÊNCIAS DIGITAIS
https://familysearch.org
http://bndigital.bn.br
INSTITUIÇÕES CONSULTADAS
Claraval-MG
Primeiro Cartório de Registro Civil de Claraval
Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Divino Espírito Santo de Claraval
Franca-SP
Arquivo Histórico Municipal “Cap. Hipólito Antônio Pinheiro”
Museu Histórico Municipal “José Chiachiri”
Primeiro Cartório de Registro Civil
Cartórios do Primeiro e Segundo Ofício e de Protesto de Títulos e Letras
Centro de História da Família, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
Ibiraci-MG
Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora das Dores
PROBRIG – Protetores da Bacia do Rio Grande
ENTREVISTAS
Antônio Rodrigues de Freitas, filho de Vicente, no ano de 2007.
Maria José Rodrigues Bertoni (Consola), filha de Vicente, no ano de 2010.